quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Inspiração





















“O escritor do coração partido”.


Era o que estava escrito na capa da Folha Ilustrada, orgulhosamente enquadrada e pendurada na parede. Na foto que ilustrava a matéria, um jovem escritor posava sorridente, sentado de pernas cruzadas no banco de um parque ensolarado.


A matéria tecia entre literatos elogios como Fernando Rio das Pedras, depois de um arrebatador pé na bunda que o fez perder o rumo de casa e o promissor cargo de trainne, escreveu um livro que conquistou semelhantes por todo país. Corações partidos de todo Brasil, do Oia-o-porre ao Chorinho, viram no seu romance de estréia um ombro amigo, um porta voz para as angústias de quem sente as pontadas da rejeição amorosa.

O segundo livro foi um sucesso ainda mais estrondoso. Leitoras de rosto inchado de choro trocavam o cativeiro do sorvete de massa e noites de comédias românticas pelas doces páginas do escritor do coração partido.

Entre os jovens, seus poucos livros tornaram-se o alento hype de quem mudava com pesar seu status nas redes sociais. Citações eram pulverizadas pela internet, usadas para indiretas de MSN, para posts melosos em murais virtuais. E com cada par de aspas, seu sucesso só crescia. Era pop. Suas frases enfileiradas o renderam um roteiro para uma mini série com Selton Mello, além de uma letra para um single de Rodrigo Amarante com Maria Gadú.

Mas algo aconteceu. O destino, sempre ele, trouxe ao jovem escritor uma reviravolta que ele jamais planejaria para um personagem. Quatro anos após sentar no sofá de Jô Soares, Fernando se via um autor sem público algum. Pior: completamente falido. Deslumbrado, tinha investido todo seu dinheiro na sua própria editora. Com os fracassos sucessivos dos últimos três livros, não conseguia cobrir nem o custo de manutenção de uma das máquinas que importou da Alemanha.

Por mais que não queria reconhecer, ele sabia o motivo.

Em uma curiosa ironia, faziam 2 anos que Fernando conhecera a mulher da sua vida. Não tinha absoluta certeza desse fato, mas só dele chegar a ser cogitado lhe trazia uma alegria imensurável. Nunca tinha se sentido tão realizado e completo em seus breves 26 anos de vida. Era maior que ele, saía pelos poros e consequentemente, pelas pontas dos seus dedos.

Mas com sua felicidade, os romances que começavam (no caso, terminavam) com “acho que é melhor a gente ser só amigo” perderam sua autenticidade. E seu público percebia. Queriam sentir sua dor em verbos e pronomes, ter a mesma compreensão sincera do que sentiam. Do que faziam eles borrarem com lágrimas Times New Roman corpo 12.

Pelas esquinas da Internet, Fernando era bombardeado:

“Escritor do coração remendado, só se for!”.
“Não engulo esse cara. Falso.”
“Quem é ele pra falar de ser trocada? Quem?”
“Até tu, Fernandus?”.

E as críticas, antes tão generosas, seguiram a voz do povo. Definições como “brega”, “superficialmente feliz”, “romântico barato” carimbavam seus livros e selaram o fim daquele jovem escritor de apelido piegas.

Estava falido em tudo: dinheiro, futuro, auto-estima.

Só existia uma solução, que o trouxe até aquele momento. Lá estava Aline a sua frente, encantadora como sempre. Esperava que ele dissesse o que tanto lhe afligia e teimava em não dizer. E ele disse, com os olhos como um copo com água além da borda.

Foi a primeira vez que Fernando terminou um namoro. E também a primeira vez que terminou sem motivo algum.

Na busca por uma reviravolta, deixou o amor ir embora por sua porta entre soluços de “mas porquê?”.

Desde seu doloroso término auto-induzido, tentou por dias escrever páginas novas. Mas seu plano não estava dando certo. Achava que a dor de perdê-la o faria publicar a Odisséia do pé na bunda em poucos meses, tempo para explicar por que tinha feito aquilo e consertar o mal feito.

Meses se passaram sem que uma única linha fosse escrita.

No terceiro mês de páginas em branco como sua vida, desistiu. Preferiu ficar falido do que perder quem mais amava no mundo. Fama, dinheiro, prestígio – qual o propósito sem alguém para dividir?

Mas era tarde demais: Aline não atendia suas ligações. E a única resposta que tinha vinha sempre por terceiros.

“Deixa ela em paz, Fernando. Você já machucou ela demais. Segue a sua vida.”

Oito meses se passaram e o bico de revisor freelancer em uma agência de publicidade passava longe de quitar suas dívidas monumentais. Mas pelo menos permitia que ele seguisse o repetido conselho e tentasse escrever um livro que reconhecia ser vazio.

Fernando tinha se tornado um personagem de seu próprio livro. Assolado por um frio constante frio na barriga, fruto de um coração que andava sempre apertado. Se sentia burro, sozinho e envergonhado pelo que deixou ir embora por sua porta.

E quase um ano depois, foi entrando por uma porta que a viu. Ainda mais bonita, sentada na simpática mesa ao lado da janela, como ela sempre gostou. Com um sorriso, tinha acabado de empurrar sua franja para trás da orelha. Estava com o braço esticado por cima da mesa, entrelaçando os dedos com outro sorridente interlocutor.

Ficou catatônico por uns segundos. Pálido. O coração - sempre ele - fazia a trilha sonora como um abafado bumbo no seu peito. Queria chegar lá e pedir desculpas. Explicar por que fez aquilo, pelo menos comunicar seu erro mesmo sabendo que era sem volta.

Expressou sua decisão em passos rápidos e firmes.

Voltou para casa e escreveu exatas 78 páginas, sem recuar a barrinha piscante sequer uma vez. Afobado, rompeu sua auto-proibição de meses atrás e abriu o Facebook de Aline. Foi direto no álbum “Viagem Angra dos Reis” .

Tortura chinesa em forma de românticos momentos em alto mar.

O teclado mal acompanhou as outras 115 páginas que saíram como um foguete. Por madrugadas a fio, Fernando alimentava a criatividade que o consagrou com sessões de auto-flagelação online.

Por fim, imprimiu um A3 colorido e colou na parede atrás do monitor. Na imagem, um plástico beijo entre risos.

Em 3 meses com poucas horas de sono, tinha escrito a obra definitiva. A obra prima do pé na bunda.

Um ano e meio depois do seu término, nunca tinha visto um editor tão empolgado com um projeto, com tantos “que bom que você voltou”. Mas o mesmo profissional apontou um porém:

- Você não tem um final, cara. O livro está ótimo, mas cadê o final? Um livro assim precisa de um gran finale, algo que amarre tudo, que o leitor encontre capa com contra capa e suspire. Desse jeito não tem propósito, fica um emaranhado de corações partidos. Fica difícil de sair. De vender. Resolve isso que a gente conversa. Boto fé!

Com um tapinha no ombro, ele tentou. Sem sucesso. A história realmente não amarrava. Por um simples motivo: para ele não tinha um fim. E talvez nunca teria. Seria para sempre uma tristeza com três pontinhos.

Com Fernando de frente para o monitor e com o queixo debruçado na mão direita, o telefone tocou. Atendeu com uma voz insossa digna de um personagem seu. Em resposta, nada. Somente um silêncio familiar do outro lado da linha.

Uma voz chegou, com a firmeza de uma coragem recém adquirida.

- Eu te juro, Fê. Você não merece esse telefonema.

A cena do restaurante se repetiu. Fernando balbuciou.

- Aline, eu...

- Cala a boca. Me escuta.

Um novo silêncio, temperado de indecisão, de “por quê estou fazendo isso?”.

- Mas a verdade é que eu não poderia passar o resto da minha vida arrependida de não ter feito.

E com um suspiro, continuou. Firme.

- O Rafa me pediu em casamento.

E lá estava ele. Ali, escancarado na sua frente, o escritor do coração partido tinha encontrado o final do seu novo livro.