terça-feira, 30 de junho de 2009

Maicou Amintas, o Rei da Bola





“- Michael, Michael, eles não ligam pra gente!”

E assim ficou gravado. Eternizado numa rodela de plástico e na faixa-título de um álbum de ninguém mais que o Rei do Pop. A voz pertencia a Rosana, carioca da gema e clara moradora do morro da Dona Marta.

O ano de 1996 rendeu 365 dias incomuns para essa mãe solteira de 34 anos. Todos, da vizinha ao Cristo Redentor, sabiam de quem era a voz que ecoou pelas casas e barracos da favela na gravação de um inesquecível videoclipe. Rosana - ela mesmo, a Rose! - numa música do Michael Jackson. Era tão fantástico que o próprio Cid Moreira concordara com isso num domingo.

Mas o que poucos sabiam, e talvez nem ela mesma, era o que sucedera nos meses seguintes à gravação da fatídica frase. Funkeiros, globais, flamenguistas, vendedores de biscoito Globo - todos da Cidade Maravilhosa queriam escutar pessoalmente a voz do sucesso. Era um deles lá, famoso. E solícita, ela sempre repetia. Com a mesma entonação, com o mesmo sorriso na voz.

Com o tempo, tamanha repetição foi se tornando incômoda. Grávida, toda vez que repetia sua frase o nenê se mexia com tamanha agilidade que quase nascia ali mesmo, seja no ponto de ônibus ou no caixa do supermercado. Parecia um moonwalk no seu útero. E ela sabia – ou sentia – que para seu filho daria a luz com um foco de holofote.

Então, após 4 meses de ininterruptos “Michael, Michael…”, nascia Maicou Amintas. Parto normal, uma criança saudável. Branquinha como o pai, um turista holandês que se encantou com outras curvas além das do Pão de Açúcar. Veio ao mundo com 2 quilos e nenhum choro, somente com um grito agudo, estridente, vogalizado em U.

Desde que se deu por gente, Maicou se sentia diferente. A fama que herdou de sua mãe logo ficou esquecida e ele ganhou manchetes próprias na comunidade. O menino loiro e de olhos azuis que morava na Dona Marta, que falava com xis e érre puxado, que queria jogar como o Romário e se derretia no calor de dias de Rio 40 graus.

Como herança aquela frase tinha deixado uma estranha sensação, que acompanhou todo crescimento de Maicou e vinha a tona nos momentos mais inusitados.

Ele tinha 13 anos. O jogo era sério: final do campeonato InterMorros, promovido pela Prefeitura e patrocinado pela Favela Tour. Olheiros de grandes clubes cariocas comiam pipoca a paisana, procurando suas galinhas de ovos dourados. O céu de domingo estava de um azul sem nuvens, com pessoas empoileradas em telhados e postes para ver a garotada levando a sério a brincadeira.

Com um apito, começa o jogo. E do banco de reservas Maicou assiste aflito a pressão do time adversário. Com dois gols de desvantagem, o técnico coloca o loirinho no jogo.

Maicou entra em campo e já recebe a bola. Dois marcadores avançam em sua direção, sedentos por sangue e pela esfera de borracha que ele leva nos pés. Instintivamente, Maicou dribla. Ágil, ele puxa a bola e desliza para trás, como se flutuasse rende ao chão, levando com ele nacos de grama e olhares estupefatos.

Ainda com a bola nos pés, ele gira o corpo no próprio calcanhar e passa entre os dois zagueiros. Sem saber como ou por que, conclui a finta com uma mão na genitália e outra apontando para cima, fazendo o mesmo grito estridente e vogalizado em U.

E pela primeira vez na sua vida, Maicou fez uma platéia ir à loucura. Casas chacoalham, telhados rangem, o povo em peso ovaciona o novo astro. E mesmo não sendo uma invasão da polícia, rojões estouram no Morro da Dona Marta.

Os anos que seguiram aquela partida foram de glória para Maicou. O talento nato e agilidade do menino com cara de gringo era um show à parte. Dribles desconcertantes nas pontas dos dedos, voleios que pareciam torcer seu pé, cabeçadas inacreditáveis, sempre comemoradas com um giro e um grito agudo, já acompanhado em coro pelas tietes.

Passou o tempo e Maicou começou a sentir na pele as cobranças da fama e da puberdade. E essa última cobrou caro para ele. Mais que ver pelo corpo nascer pêlos e desejo sexual, para Maicou essa época de rouquidão e descobertas não foi nada agradável.

No começo ficou contente, achando que era o bronzeado que finalmente decidiu reluzir na sua pele. Mas a cada dia o bronze se tornava mais intenso, e mesmo após semanas de recusas a convites para a praia, continuava a ficar moreno da cor do Brasil. Com medo do que seus fãs - seus queridos fãs - diriam, Maicou ficou cada vez recluso, trancado em casa apavorado de si mesmo.

Olhava no espelho e não acreditava. Seu cabelo estava escurecendo - e enrolando. O que antes eram longas madeixas loiras e lisas aos poucos dava lugar para um microfonado Black Power. Seu fino e arrebitado nariz estava alargando, com narinas grandes. Se sentia mais forte, mais viril e com ainda mais saudade dos tempos de traços europeus.

Maicou não conseguia deixar de arregalar os olhos a cada ida ao banheiro. Suas cuecas não serviam mais, e tudo que usava - principalmente de peças íntimas - eram roupas do varal de Jorjão, vizinho e eterno pretendente de sua mãe. Rose, por sua vez, acobertava a reclusão de seu filho com maternal cumplicidade. Muito antes da chegada da Gripe Suína, desculpava por ele com uma raríssima e contagiosa doença com C maiúsculo, mistura de catapora, caxumba e conjuntivite.

Meses haviam se passado desde que Maicou se trancou em casa. Afastado pela doença e pela rotina de sua vida, o morro da Dona Marta logo esqueceu quem era Maicou Amintas.

Foi num domingo de Maracanã que ele decidiu, pela primeira vez desde o primeiro cabelo preto nascer, sair de casa. Colocou a calça jeans como sempre fazia: calça pro alto, um ágil chute pra cima e pronto: vestido. Camisa branca com o logo do Oludum - presente de Jorjão - tênis surrado e óculos Raio-Bam. Um pequeno pente, muito parecido com um garfo, completava o visual espetado no seu cotonetado Black Power.

Abriu a porta devagar, e mesmo de óculos escuros, a luz de sol que atravessou desde a primeira fresta logo irritou seus olhos. Seguiu para a rua e começou a descer a ladeira se acostumando com a visão. E que bela visão! Crianças caminhando, pessoas tocando suas vidas e aproveitando o domingo.

Chegou ao campinho. O campo de futebol, palco de tantas performances, de tantas gritos agudos e tanta histeria. Rapazes que jogavam bola pararam a jogada, olhando quase em sincronia para o curioso visitante que invadiu o esburacado gramado.

- Caraca negão, sai daí que a gente quer jogar!

E pela última vez na sua vida, veio como que gravado num CD de platina uma única frase:

- “Michael, Michael, eles não ligam pra gente!”

E Maicou achou ótimo.

segunda-feira, 22 de junho de 2009

Música ao Perto












O amor que ainda não se definiu é como uma melodia do desenho incerto. Deixa o coração a um tempo alegre e perturbado e tem o encanto fugidio e misterioso de uma música ao longe...

Erico Veríssimo


Este trecho foi escrito em 1935. Dos tempos que mão dada era um rolo, dedo entrelaçado um namoro e mão na coxa apertando com os dedos um pernoite na cela da delegacia.

Muita coisa mudou desde então. Mais liberdade sexual, menos tecidos... Mas o amor continou, igualzinho aos tempos do meu vô Sérgio. E a música que toca com ele, também. Passam os bondes, chegam os carros e essa mesma canção ainda atravessa gerações.

Achar a frequência certa dessa música é como sintonizar um rádio antigo, desses que o dial são duas rodinhas, com a mulher de um lado e o homem no outro, separados pela caixa de som.

Um gostar mútuo, verdadeiro, é nada mais que uma sintonia entre ambas frequencias. Poucos sabem, ou percebem, mas para o afeto estar alinhado e os batimentos estarem no mesmo compasso, muitos fatores foram superados. Cada metade da laranja tem a sua bagagem amorosa, os seus problemas, o seu atual momento cardíaco.

E para um casal estar junto e genuinamente feliz, tudo tem que bater. Ou simplesmente ser relevado. Para dar certo, a vontade de se ver que vem meio de repente tem que ser maior que qualquer decepção antiga ou preocupação atual.

O problema, amigo meu, é que só vontade não basta. Encontrada a sintonia certa, onde a música flui sem ruídos e jingles da Mack Color, é preciso que ela seja boa aos ouvidos. Afinal, de nada adianta um rádio bem sintonizado se os acordes depois que soam lhe dão calafrios pelo corpo.

Isso acontece com o tempo e com encontros em cafés e mesas de barzinhos, quando num clique, algo lhe diz que para essa pessoa você não tem mais nada a dizer. Muitas vezes, por mais que você se esforce, repita o nome da pessoa na frente do espelho ou coloque no repeat músicas de edredom, chega como uma onda sem sal um inexplicável desinteresse. Entrou em cartaz “Ele - ou ela - não está tão afim de você.”

Há pessoas que simplesmente não te atraem, por mais que racionalmente tenha todas as qualidades que perfazem um bom companheiro. Não existe um motivo, simplesmente não desce. É como aquela comida, que desde criança você coloca a língua para fora e empurra o prato virando o rosto para o lado contrário.

Não gosto de frescura, tenho profundo preconceito – e assumo - com quem não come uma categoria inteira de comida, vide comentários como “Sabe, não gosto de tudo que vem do mar.” Agora, é de direito não gostar de azeitona ou strogonoff de frango. Não gosta e pronto, não desce. Respeito.

Funciona assim com pessoas. Simplesmente para o seu paladar amoroso não é agradável, e não há nada de errado nisso. O problema é explicar isso para o pretendente. “Desculpa, é algo da mistura entre creme de leite com catchup que pega pra mim. Você entende.”. Para quem lê isso com lágrimas nos olhos achando ser o motivo para todos os cacos do seu remendado coração, existe o contraponto da esperança.

Pense no seu prato favorito. Agora resuma em uma linha por que você adora quando vê ele perfumando o ar com seu vapor saboroso.

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Não tem por que resumir. É uma delícia, e pronto. Você gosta, te faz bem, você suspira e fecha os olhos a cada garfada. É assim.

O mesmo pode acontecer com a pessoa do outro lado da mesa. O que é inexplicavelmente desatraente em um, pode também ser de forma ainda mais misteriosa apaixonante em outro. E quando isso acontece, bem como seu prato predileto, você degusta cada pedaço com gosto.

Seja em música ou culinária, o importante é você estar sempre de ouvido afinado e panela a tiracolo. Ajustando o seu dial e sintonizando de estação em estação, para encontrar sua música predileta e fazer dela, trilha do seu jantar a dois.

segunda-feira, 15 de junho de 2009

Calcinha no Box













Seguindo o ritual habitual, Vamberto gira seu quadril na cama, colocando os pés descalços para fora. Fica sentado um instante, remoendo sua saudade do edredom. Leva as palmas da mão ao rosto, esfregando os olhos e bochechas. Suspira, toma coragem, e levanta. Caminha arrastado, vestindo uma samba-canção xadrez alaranjada que cobre metade de uma das nádegas.

Faz um resgate preguiçoso e segue para o banheiro. Aproxima-se da privada bocejando. Logo antes de despejar seu alívio em forma de liquido amarelado, trava a bexiga.

"Cacete, quem abaixou a tampa?" – resmunga.

Num gesto rápido e aflito, ergue a tampa e alegremente volta a esguichar o seu mijo. Feito o serviço, coça a cabeça – isso mesmo, sem lavar a mão – despe-se e entra no box. Pânico. Com seus olhos arregalados, ele vê. Ali, pendurada na torneira, uma calcinha bege, de renda, úmida como um coador de café recém usado.

Um turbilhão de ex-namoradas passa pela cabeça de Vamberto, num slideshow direto do túnel do tempo. Marli, Soninha, Marcelle. Todas nas mais diversas situações. De roupa de gala no baile, de bermuda passeando no parque, com o seu pijama de flanela. Mas nunca no seu banheiro. Não assim, não pendurando calcinhas!

“Vou conversar com essa empregada. Que quê é isso? Calcinha no meu box. Eu tenho vergonha de deixar cueca freada, e ela me larga uma calcinha no chuveiro? Que isso!”.

Se ensaboa e se esfrega com força, quase com raiva. Sai do box e se enrola na toalha, batendo a porta de plástico fumê.

De toalha na cintura, chega perto da pia e estica a mão para alcançar sua escova de dentes. E a surpresa, sem lhe dar trégua, só mostrou um par de escovas. Levemente inclinadas, dando um beijo de cerdas no mesmo potinho de acrílico. Segura e olha para ambas na palma da sua mão, perplexo. Cuidadosamente, devolve no pote e se agacha devagar, com a velocidade de um praticante de Tai Chi Chuan. Num rápido movimento, abre o armarinho embaixo da pia com força, dando de cara com um cubo de Sempre Livre Flexi Abas. Não um só, vários. Um estoque! Ergue, olha e revira a pia – perfuminhos, maquiagem, potes enfeitados com bolinhas de algodão.

Olha para o espelho e vê um homem ofegante, de cabelo molhado, catatônico. E no reflexo, uma mulher sentada no vaso fazendo xixi.

“Que foi Vamba? Parece que viu um fantasma”

A mulher olha pra ele com um meio sorriso, com afetuosa curiosidade. Vamberto não responde, só olha para ela, calado. Tudo que ecoa no banheiro é o som da fina cachoeira na porcelana.

Ela olha de volta, já achando que tem algo de muito estranho no seu marido.