segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Horário




















Diz o ditado: “cabeça vazia é a oficina do Diabo”. Do Capeta. Do Coisa-Ruim. Do Exu-Caveira.

Muito mais que um playground do José Sarney, essa frase resume perfeitamente o fértil terreno que uma cachola vazia proporciona aos que se renderam ao marasmo de uma tarde.

E hoje, faço um breve workshop.

Pela primeira vez em muitos anos cheguei ao dia de ser uma segunda-feira e eu simplesmente não ter o que fazer. Não abri o vidro do carro para receber o Metro na esquina da Santo Amaro. Não fiz fila no quilo com um prato recém saído da máquina de lavar na mão e muito menos comemorei que era segunda, dia de comida árabe.

Estou no interior paulista, com os dedos postos no mesmo ruidoso computador de mesa que tantos slides sobre citoplasmas fez. Uma casa que há mais de quatro anos eu só conhecia por finais de semana, hoje mais uma vez, me mostrou sua rotina. Lá fora, o perdigueiro companheiro dorme ao sol. Vindo da cozinha, o som de locomotiva da panela de pressão e o cheiro de refoga quase borbulhando esperando por grãos de arroz.

A sensação é que logo visto meu uniforme amarelo ovo, minha mochila verde herdada do primogênito e sigo para a escola, rumo a minha apresentação sobre células na aula de biologia.

O fato é que desde o primeiro berreiro aberto neste mundo, o horário sempre nos acompanha. Seja ele imposto pelo leite materno ou pela reunião das 10 e meia, lá está ele. Chame-o de Compromisso, Hora Marcada ou Sessão das Sete, é ele quem apressa suas ensaboadas no chuveiro e toma seu café no elevador.

Nossa relação com o Horário é a clássica relação de mulher de malandro. A gente sofre, reclama, aparece com o olho roxo das noites mal dormidas, mas quando ele desaparece sentimos o peso de sua ausência, o seu cheiro dentro de um livro nas cinzas das horas.

Sem hora marcada nos sentimos incompletos, sem estímulos, presos somente a nossa própria Força de Vontade. E muitas vezes, ela não é páreo justo para a Preguiça. Somente o Horário, como o irmão mais velho que salva do valentão no recreio, encara a Preguiça apontando dois ponteiros para o seu rosto.

Como todo ingrediente que marca presença nesse sopão agridoce chamado Vida, o Horário pode se manifestar tanto em apitos matinais de despertadores quanto reservas em restaurantes, sessões de cinema e tudo mais que, prazerosamente, fazem o tempo passar mais rápido.

Aliás, que horas são?

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Mensagem - de texto - pra você




















Era um lindo sábado de céu azul da cor do mar, mesmo estando a algumas centenas de quilômetros longe da praia. Era um azul vivo, desses que ao mesmo animam e acalmam, refletido numa grande e retangular piscina de água cristalina.

Na beira do domingo e da piscina do clube as irmãs e melhores amigas Rosana e Silvinha tomavam tranquilamente suas bebidas e papeavam sobre a nova namorada do primogênito de uma, entre uma folheada e outra de Caras.

Ambas à vontade como o que vestiam: um biquíni discreto, com a canga enrolada na cintura. Na cabeça, um chapéu de palha macia, com o adereço de um pano rosa claro envolto com um nó logo em cima da aba.

Cinquentonas, realizadas, mães de meninos com mais de um quarto de século completo e casadas há mais de 30.

A manhã era mansa, calma como os domingos foram criados para ser. Até um celular apitar.

Homem de poucas palavras e espesso bigode, o engenheiro de tráfego Amadeu aproximou-se por trás de sua digníssima senhora e companheira. Pouco antes dela se virar, tascou um beijo entre sua nuca e boca, logo onde desenha o rosto. Antes que ela pudesse por em palavras sua surpresa, Amadeu respondeu com ternura:

- Eu também. – E sorriu, esticando as franjinhas de seu bigode.

- Eu também o que, Má? – Respondeu Rosana, entre curiosa e carinhosa.

- Eu também… Recebi sua mensagem no celular. Eu também. - E sorriu de volta, ainda enternecido.

- Que mensagem? Eu nem sei mandar mensagem direito Amadeu.

- A mensagem, Rosana. “Má, te amo muuuuito”.

- QUE MENSAGEM? – o que antes era carinho transformou-se em um raivosa curiosidade.

Do repentino beijo do cunhado ao “que mensagem?”, Silvinha foi instintivamente entrando aos poucos debaixo da mesa, que já passava da altura do seu umbigo.

Amadeu ficou perplexo. Se sentindo culpado mesmo sem ter culpa.

- Não foi você?

- Não! Claro que não né! Deixa eu ver esse troço – Rosana começou a ficar impaciente.

- Ma-mas você escreveu “Má”!

- EU SEI. Quem mais te chama de Má, Amadeu? Só eu. – Caixas altas não expressam a ira contida que começou a tomar conta do seu rosto.

- Você só, ué!

- Vou ligar. – tentou mexer no aparelho por alguns segundos, bufando a cada tecla aperta. – Que droga! Como que faz pra ligar pra esse número?

- Mas pode ser engano, Rô. Só pode ser! Marcelo, Mauro, Marcos, Marcondes… São muitos “Más” por aí! – Enquanto falava, a papada de Amadeu balançava freneticamente em sua defesa.

Silivinha, sabendo do ciúmes que conhecia desde os tempos na casa de bonecas, e na tentativa de ajudar o seu cunha, interveio:

- Além de Marcelas, Marianas, Marias… Mandaram errado, acontece. Eu já li-

Rosana já cortou.

- E pode ser Amadeu! Vou ligar.

E ligou. Segundos foram estendidos para horas a cada longo toque de chamada.

- Alôquemfala? – Disse assim mesmo, sem vírgulas e pausas. – Roberto? Escuta Roberto, você namora alguma Maria? Por que você mandou uma mensagem pra lá de melosa para o meu marido.

Silvinha e Amadeu se entreolharam, apreensivos. Rosana continou:

- Pois você olhe bem nos olhos da Márcia e fala “eu te amo” com todo seu coração. Por que além de muito mais bonito, você não se declara pro marido dos outros!

Apertou o botão “end” com força, e desligou. Mexeu sua caipirinha com o misturador de plástico, e sorriu amarelo. Rindo. Ambos riram na mesma cor.

Resolvida questão, Amadeu se despediu das duas e voltou para sala de sinuca do clube, só parando para mexer no celular e mandar uma única mensagem:

“Beto, você é muito burro. Mas eu te amo muuuuuuito!”

terça-feira, 4 de agosto de 2009

Almir e o Acaso





















Amigos em comum, mesma faculdade, o filtro de água do escritório… Isso é coisa para o divórcio em 2 anos, da viagem pra Monte Verde para comer foundie e voltar de pochete. Não o eufemismo para pança, aquela bolsinha mesmo, que vai amarrada na cintura tintilhando moedas e uma capa de chuva amarela e bem dobrada.

- Bons casais começam no inesperado, cara!

Era o que dizia Almir, "o conquistador do improviso", título merecido após conhecer uma namorada colocando rapidamente o seu pé embaixo da roda de um 4×4 em movimento.

Almir acreditava piamente no Acaso e nas mais certeiras flechadas do cupido. Na trombada que espalha papéis antes da reunião e cruza o olhar ao levantar do chão. Da catraca de ônibus que roleta a garota mais bonita que ele viu na vida, e a faz sentar bem ao seu lado.

Mas como nem sempre o Acaso está para presenteá-lo com estes regalos da paixão a primeira vista, Almir criava suas próprias oportunidades.

A noite de Almir não começava com “oi tudo bem” ou “qual o seu nome?”. Não senhor. Se não derrubasse uma bebida numa dama de vestido branco ou engasgasse com a azeitona de um martini comprado a par, nada feito. E grande parte das vezes ele voltava só, frustrado por seu insucesso e com o fato da madrugada não proporcionar sinais vermelhos para emparelhar seu carro com outro, de outra.

Almir era o Rei do Auto-Serviço, como ele mesmo gostava de se coroar. Farmácias, supermercados, padarias… Incontáveis vezes se pegou olhando embalagens de absorventes enquanto observava uma garota passar com sua cestinha de plástico azulado. Olhares entre gôndolas, comentários sobre a diferença entre o italiano e o hamburguês, sugestões refinadas de produtos na sessão de Limpeza:

- Leve este Pinho Sol, é formidável. Faz o mesmo trabalho que o Sapólio, não resseca a mão e dá muito mais brilho.

No trabalho Almir era fechado. Limitava-se ao seu ofício e a pensar nas infinitas possibilidades de encontros inusitados que as esquinas da vida proporcionavam. Ela poderia estar ali, em um muro com as mãos na cabeça durante uma blitz policial, num elevador que parasse entre andares por dias, em tudo que o Acaso - primo-irmão do Destino – colocasse no seu caminho com uma flecha no peito.

Enquanto ele suspirava, flechada ou não, na baia ao lado a míope e simpática Vânia via muita graça naquele rapaz engraçado que pouco falava. Juntos iriam rir muito, fazer viagens, dividir planos e discussões calorosas como as noites regadas a vinho.

Iriam, pois para Almir, tudo isso só aconteceria se num voo eles sentassem nas poltronas 27 A e 27 B, abrindo o mesmo livro ao longo da viagem. Se batessem o carro e trocassem telefones para acionar sinistros na hora do rush. Ou, quem sabe, se o avião caísse com os dois numa ilha deserta?