domingo, 17 de novembro de 2013

Anestesia



Toda pessoa hospitalizada inevitavelmente vai acordar da sua anestesia com o barulho da máquina que monitora os batimentos cardíacos. Abrir os olhos devagar, sendo despertando para o mundo por um apito constante, seco e robotizado.

Pelo menos no cinema é assim.

E foi exatamente assim que Carlos acordou.

Na pelada de terça, Carlos havia fraturado feio o seu braço. Uma placa de titânio e mais 8 pinos de guarnição tiveram quer ser colocados, em uma cirurgia de uma hora. Obviamente, para tal trabalho de marcenaria óssea foi preciso que ele fosse devidamente sedado.

Com o clarão da luz branca e incômoda do seu leito, Carlos lentamente abre os olhos.

Demorou alguns segundos rodando os olhos pelo quarto pela lembrar o que aconteceu. Futebol. Escanteio. Pulo. Queda. Fratura. E uma máscara segurada na sua boca, acompanhada de um doce pedido sugerindo que ele respirasse fundo aquele gás que lhe lembrava lança-perfume.

As silhuetas borradas na sua frente ganharam contornos mais bem definidos.

- Eu não estou acreditando. Você acordou. Você finalmente acordou!

Um homem na faixa dos 60 anos abre um sorriso contente. Seus olhos quase transbordam lágrimas de alegria.

Carlos nunca viu ele na vida. O homem, por outro lado, parece conhecê-lo há muito tempo. E com um sorriso, pergunta:

-  Como você está se sentindo, Tutinho?

Faltam palavras para Carlos. Ninguém no mundo, além de sua esposa há 20 anos, conhece ou usa esse apelido. O qual tem regras claras de ser empregado somente em situações que os dois estão sozinhos.

- Quem é você?

- Sou eu, Tutinho.

- Que palhaçada é essa? Sônia! Sônia!

- Não precisa chamar por ela. Eu estou aqui, Tutinho.

- Para de me chamar de Tutinho, seu filho da puta. Só a Sônia me chama de Tutinho. E se você não sair daqui agora e acabar com essa palhaçada eu vou quebrar a sua cara. Sônia!!

- Janeiro de 1996. Fomos para Natal. Alugamos um buggy. Você dispensou o motorista e disse que sabia dar muito mais emoção que o bugueiro. Você quase capotou em uma duna e por pouco não voltamos mais cedo para casa.

Palavras que expressariam espanto transformam-se em olhos arregalados no seu rosto.

- A noite você insistiu em comer uma dúzia de ostras, só por que era muito barato. Passou super mal e eu te levei, pálido, para tomar soro.

O homem espera Carlos absorver tanta informação.

- Está vendo? Sou eu, Carlos.

Com um cafuné na sua cabeça, o homem suspira:

- Eu tenho tanto para te contar...

Carlos não consegue esboçar reação. O homem continua.

- A cirurgia no seu braço teve uma série complicações. E tiveram que induzir você a um coma.

O homem respira fundo, dando uma involuntária pausa dramática ao que ia dizer.

- E se passaram 15 anos desde então.

- Eu estava há 15 anos em coma??

O desconhecido afirma com pesar. Carlos começa a tatear seu rosto. E para seu horror, ele está coberto por uma barba espessa. O homem tira um espelho de maquiagem do bolso da frente da camisa. Entrega virando seu rosto para o outro lado.

Carlos está com uma barba branca. Os cabelos, antes grisalhos, foram praticamente tomados por fios prateados pela velhice.

- Isso não é possível. É um sonho. Só pode ser um sonho.

- Não Carlos, não é.

Com um estalo, Carlos lembra de outra dúvida que ele queria tirar.

- Então quem é você?

- Eu não sei por onde começar. No fundo, sabia que esse dia ia chegar...

- Me fala, cacete! Quem é você?

- Eu sofri muito esse tempo todo. Não conseguia seguir minha vida. Não conseguia virar a página, por que de fato não era uma viúva. Vivia com uma tristeza no peito, um vazio. E só revi a felicidade quando encontrei o Sandro.

- Sandro? Quem é Sandro?

- Sou eu.

A máquina apita freneticamente.

- Isso mesmo, Tutinho. Eu era a Sônia, a sua Sônia. A sua esposa. E eu mudei de sexo.

Carlos tenta balbuciar algumas palavras. Inflada de ar e coragem, Sandro continua:

- Tomei hormônios. Usei barba, bigode. Menos cavanhaque que ficou pouco másculo. Eu finalmente vivi, sabe? Fui para a balada. Para o boteco jogar sinuca. Fui até para o Carnaval de Salvador, com o Betão e o Vagner, seus amigos divorciados. Eventualmente encontrei uma mulher boa, sosseguei. A vida seguiu.

- Isso não pode estar acontecendo comigo. É pegadinha.

- Não meu bem, não é... Mas por favor, me entenda. Os médicos disseram que você era um casa perdido! Eu não tive opção senão buscar ser feliz.

O recém acordado afunda os rostos nas mãos, em um esforço para que quando esses cortinas abrissem tudo voltaria ao normal.

- Mas eu estou aqui agora, do seu lado. Além de sua mulher, sempre fui sua amiga. E agora sou seu amigo. Seu brother.

Sandro sorri ternamente para Carlos.

- Encare isso como um recomeço! Você acordou. Você tem uma vida para aproveitar agora.

Carlos respira fundo por 40 minutos, com Sandro esperando pacientemente ao seu lado. E consegue, em um milagre da sensatez, por as coisas em perspectiva. Realmente, ele poderia agradecer por estar vivendo. Afinal, o que mais poderia piorar? Ele realmente tinha usado toda sua cota de azar da vida. Agora era recomeçar. Isso mesmo: recomeçar.

- E o Carlinhos, cadê o Carlinhos?

Sandro sorri mais uma vez.

Um rapaz vestido em um terno alinhado e com sutis riscas de giz entra no quarto. Estava esperando a sua deixa para abrir a porta.

Pela primeira vez desde que acordou, Carlos sorri.

- Carlinhos! Como você cresceu, menino. Está um homem! E que elegância, parece o Ronnie Von. Me conta, o que você faz da vida?

- Eu vendo Monavie, pai.

terça-feira, 15 de outubro de 2013

O Arquivo


Washington DC. 20 de janeiro de 2009. No gabinete presidencial da Casa Branca, um ansioso recém-empossado mandatário da nação batuca na sua mesa de carvalho escurecido. Está ansioso. Pela primeira vez como presidente dos Estados Unidos da América, Barack Obama tem uma reunião marcada com o Secretário de Defesa.
Hora de conhecer os fatos obscuros que somente o presidente do país mais poderoso do mundo pode saber. O que raios tem naquela Área 51? Quem de fato matou Kennedy? O que realmente ocorreu na Crise dos Mísseis? O que aconteceu com o Ronaldinho na final de 98?
A porta se abre. O Secretário entra com passos firmes, carregando uma maleta rígida e de couro preto.
- Bom dia, senhor presidente.
O Secretário está impassível.
- Bom, vamos começar.
Apóia sua maleta no colo. Com um estalo, abre simultaneamente os fechos em cantos opostos. Tira de dentro um envelope pardo, fechado por um barbante enrolado. Não há sequer o carimbo vermelho de “Classified”. O arquivo não passa de um simples – e incendiário - envelope marrom claro.
Deita o envelope na envernizada madeira da mesa, levantando os olhos com uma pergunta implícita: “Tem certeza?”.
Barack Obama responde com a cabeça em um lento sinal positivo.
Cuidadosamente, o Secretário desenrola o fio preto que separa o Presidente dos fatos bombásticos que ele terá que levar para o túmulo.
Com os dedos em pinça, Barack Obama esgueira sua mão dentro do envelope. O conteúdo impressiona: é uma única folha de papel.
O presidente corre os olhos lentamente pelo revelador pedaço de sulfite.
Termina com um suspiro e uma expressão incrédula.
- É isso?
- Sim.
- “Torta de frango da Isa – Passo a Passo.”
- Isso mesmo, senhor.
- O que porra eu devo fazer com isso?
- Você já experimentou a torta de frango da Isa?
- Não.
- Então. Quando experimentar vai entender.
- É sério isso?
- Sim, muito sério.
- Já comi muitas tortas na vida. Adoro tortas. Você fez sua pegadinha, beleza. Mas agora é sério. Pare agora com essa palhaçada.
- Não é palhaçada, senhor.
A mesa sente o estrondo do soco de Obama contra sua superfície.
- Cadê os dossiês sobre ETs? Cadê o discurso pronto no caso de um apocalipse espacial? Cadê o míssil secreto que explode asteróides?
- Isso tudo você acha na Internet. A torta da Isa, não. Não existe nada como a torta da Isa.
O Secretário pausa para engolir sua saliva. E continua:
- Sério, ninguém faz igual no mundo. Você nunca na sua vida vai comer algo como essa torta, por mais que você procure. A massa é molhadinha. O recheio é temperado na medida. É uma explosão de sabor na sua boca.
Obama passa a palma das mãos no rosto, visivelmente irritado.
- Eu cheguei até aqui, fiz campanha, prometi mudança, virei web celebrity... Tudo para saber como fazer a torta de frango de uma brasileira de Barão Geraldo?
Alguém bate a porta. O Secretário autoriza.
- Pode entrar.
Um mordomo empurra um elegante carrinho de comida, com um garfo e um único prato coberto por uma tampa prateada.
- Puta que pariu. Eu pedi comida por acaso?
- Eu que pedi, senhor.
- O que é isso?
- A torta, senhor. A torta.


terça-feira, 24 de setembro de 2013

Cine Sonho


O ano é 2114, D.C.
O mundo continua com os hábitos do século passado. Fotos na academia, auto-retrato com biquinhos e frases sobre o trânsito – mesmo que agora ele irrite pelo ar, em carros elétricos que flutuam sob comandos de voz – continuam a fazer parte de nossa rotina. Talvez agora com smartphones um pouco mais modernos.
A Ciência e a Tecnologia, essa dupla dinâmica do progresso, trouxe avanços consideráveis para a Humanidade. Mas entre suas diversas contribuições, uma invenção conseguiu jogar para escanteio o que parecia impossível. O Cinema, essa arte que tanto entretinha 100 anos atrás, foi posta de lado para algo que até então ficava confinado nas salas de psicólogos ou na cabeça de seus autores: os sonhos.
O processo de telecinagem de sonhos foi uma revolução ao alcance de todos. Um simples aparelho que capturava as ondas eletromagnéticas que o cérebro produzia enquanto a pessoa sonhava. E as transformava em imagens. O sucesso foi estrondoso. Pela primeira vez, o homem podia gravar e assistir seus sonhos, no simples apertar de um botão. Como um serviço de uma TV a cabo.
Os primeiros anos foram um processo de maturidade do serviço. Com a sociedade compreendendo a natureza reveladora de um sonho e a necessidade de torná-lo algo privado e íntimo. Em pouco tempo o ato de assistir seus sonhos entrou na categoria daquilo que é feito em um banheiro. Todo mundo tem uma boa ideia do que se passa lá dentro, mas não é por isso se pergunta o que aconteceu.
Os que decidem revelar seus sonhos normalmente caem no limbo de ignorância coletiva. Simplesmente por que o resultado, via de regra, é um embolado de imagens desconexas e com pouco sentido até para seu autor. Somente alguns poucos nascem com o dom de uma só vez dirigir, editar, produzir e fotografar verdadeiras obras-primas da Oitava Arte: o Cine Sonho.
Laércio Sandoval era um deles. Considerado um dos maiores diretores de sonhos do seu tempo, Laércio colecionava sucessos. Aclamado por público e crítica, era considerado um diretor visceral, com obras que levavam o expectador para lugares inimagináveis. Como a história do menino equilibrado de bruços em 10 andares de pranchas de body-board. Do alto dessa frágil torre de pranchas empilhadas, o garoto tinha que ralar uma bolinha de noz moscada e fazer o tempero aterrisar em um pires lá embaixo. Poesia pura. Um gênio do seu tempo que realizava obras-primas simplesmente apertando REC antes de dormir.
Ainda era 2114 quando inimaginável aconteceu. Na pré-estreia de seu último sonho, exclusiva para críticos e redes de cinema, o projetor sequer iluminou a sala. Constrangido, Laércio cancelou a sessão, culpando um defeito no aparelho. Remarcou a sessão com garantias de um projetor novo e um sonho incrível. Assim que a sala se esvaziou, lhe correu pela coluna um calafrio que ele sempre temeu. Ele simplesmente deu play para sua pequena platéia sem saber o que tinha sonhado. No caso, nada.
Passou o dia se distraindo e propositalmente se cansando. Palestras, sessão de autógrafos, tarde de sexo com uma fã. Tudo para seu corpo ter motivo de sobra para descansar e deixar seu cérebro – ou melhor, seu hipocampo – fazer sua mágica.
Acordou revigorado e ansioso. Foi correndo para a sala e colocou o resultado de sua noite bem dormida para rodar. Nada.
Os dias passaram e Laércio seguiu sua rotina. Sempre com a mesma decepção. Os dias se tornaram meses, as visitas dos executivos se tornaram nulas e a legião de fãs – inclusive aquela da tórrida tarde de prazeroso esforço físico – desapareceram.
Confiante e decidido a se reerguer, Laércio procurou resolver seu bloqueio sonhativo em termos práticos. Precisava abastecer seu cérebro de novas experiências. Novos anseios, pessoas, memórias. Por isso, fez uma pequena mochila e viajou. Durante meses, conheceu lugares incríveis e pessoas igualmente interessantes. Passou perrengues e bons momentos. Levou consigo, é claro, um gravador de sonhos para registrar o que tudo isso produziria enquanto dormia.
E o resultado, novamente, foi longe do esperado. Somente imagens desconexas do que viveu. Frases e imagens soltas no turbilhão de suas memórias.
Determinado a ter um sonho grandioso outra vez, Laércio percebeu que lhe faltava um estímulo incendiário: paixão. Movido por sua ambição, conseguiu se mostrar uma pessoa atraente o suficiente para embarcar em um relacionamento sério. E o melhor: com amor.
Anos depois, terminaram. Curiosamente, a pedido de Laércio. Segundo ele, a tristeza poderia gerar sonhos belíssimos.
Eventualmente seu plano falhou. E ao invés de um lindo sonho, Laércio teve que conviver por um tempo com o pesadelo de seu arrependimento.
Os anos foram seguindo, com Laércio vivendo com empenho alegrias, decepções, paixões, lugares, desejos, momentos, risadas e descobertas. Tudo para conseguir ver de volta às telas do Cine Sonho uma obra de Laércio Sandoval.
Nunca mais viu um sonho seu projetado no escuro do Cinema. Mas sem saber, teve uma vida digna de aplauso.

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Manual de Instruções


Uma cegonha desliza pelos céus.

Depois que ela pousa na janela das maternidade e entrega sua encomenda para a mãe, a cegonha conclui a segunda etapa de seu trabalho.

Aproveitando a comoção do momento, ela repassa - discretamente - um papel com claras instruções para o pai.

Transcrevo abaixo o conteúdo desse valioso documento:


“3 Etapas para Acordar um Filho em Idade Escolar

1) Abra a porta bruscamente e diga em um tom firme: ‘Acorda. Escola.’

2) Escancare a janela e deixe o brilho da manhã cegar seu herdeiro como um vampiro exposto a luz do dia.

3) Assovie para o cachorro, preferencialmente um de porte médio para cima,  e o faça entrar esbaforido e carente de atenção. Reforce que nesse momento, ele está autorizado a subir na cama.”


sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Término


Foi uma mensagem de texto, como tantas outras que trocaram nesses 2 anos de namoro, que entregou o convite. “Cinema hoje? Tem uma sessão às 20hs. Bjs”. Não precisava dizer mais nada. Breno já sabia o shopping, provavelmente qual era o filme e com toda certeza quem seria seu par.
Se encontraram no lugar habitual, uma herança do tempo que os encontros eram marcados sem a ansiedade que um celular proporciona. Em frente ao McDonald’s, ao lado do carrinho de castanhas caramelizadas que perfumam o ar e custam uma fortuna.
Carlinha já esperava por ele, apoiando o braço direito na alça da bolsa. Ao avistá-la, Breno aperta o passo e abre um sorriso.
- Oi amor... Vamos? Já está em cima da hora e...
- Breno. Senta um pouco.
- Está com fome? Porque se for comer, melhor levar para o cinema.
- A gente pega outra sessão. Queria conversar com você um pouco.
A gravidade da situação ficou clara como neve para Breno.
- O que foi? Aconteceu alguma coisa no seu trabalho?
Carlinha responde com um suspiro penoso.
- Não, não é nada disso.
- Então o que é?
A resposta veio de bate-pronto, como se tivesse previsto a pergunta.
- Acho que a gente devia dar um tempo.
- Um tempo?
- É, um tempo. Eu tenho me sentido confusa, sabe? E preciso de um tempo para ficar sozinha e me encontrar.
Os olhos de Breno involuntariamente se enchem de lágrimas.
- Mas você só pode fazer isso sozinha? Eu posso te ajudar a se encontrar.
- Eu sei que sim, lindo. Mas é algo que preciso mesmo fazer sozinha. O problema não é você, sou eu.
Breno não sabia avaliar se o que doeu mais foi o clichê ou o pé na bunda. Mas Carlinha continuou implacável.
- Eu gosto muito de você. E gostaria muito que continuássemos amigos.
- É mesmo? Amigos? – Breno ganha vida, como se tivessem injetado ânimo nas suas veias.
- Ahnm, sim.
Breno se acalma.
- Puxa, que bom. Também gostaria. De verdade.
- Sério? Que ótimo, Breno. Por um momento achei que você está sendo irônico. Sabia que você ia ser maduro e reagir muito bem.
- Magina! Amigos.
Estendem os braços pela mesa e dão um efusivo aperto de mão. Depois de longos segundos, o silêncio de seus sorrisos só não evolui para um momento de leve constrangimento devido a uma pergunta.
- Qual o nome daquela sua amiga do curso de espanhol, uma morena, baixinha?
- Quem, a Bia?
- Isso! Sempre achei ela uma gatinha.
- Breno, quê isso?
- O quê? Você é minha amiga. Te conheço há anos. Não posso te contar esse tipo de coisa?
- Sim, mas...
- Então, como uma boa amiga, que me conhece bem e tal, podia me apresentar ela.
- Não vou te apresentar a Bianca.
- Por que? Ih... Ficou com ciuminho, é?
Carlinha sabia o que ele queria com tudo isso. Mas naquela sociedade, ela que entrou com o pé e ele com a bunda. Não ia dar esse gostinho.
- Claro que não! Eu que comecei essa amizade, lembra? Sério. A Bia não combina em nada com você.
- Ah, isso deixa que eu descubro.
- E outra. Ia ficar uma situação chata...
- Chata por quê? Na boa, eu sei quebrar o gelo muito bem. Já sei até o barzinho que vou levar. Aliás! Pensando melhor, a gente podia fazer um double date! Lembra do Marquinhos, meu primo? Ele é meio chucrão, mas é muito gente boa. Está na pista, posso falar com ele.
- Para Breno! Para! Que saco. Não vou te apresentar a Bia. E nem ninguém. Entendeu?
- Pô... Por quê?
O cinismo cafajeste de Breno irritava Carlinha profundamente.
- Por que você merece alguém que te valorize, sabe?
- Claro que mereço! Mas é o que dizem: enquanto não acho a certa, posso muito bem me divertir com as “errada”.
Riram. Olhando para baixo com um meio sorriso, Carlinha esperou os risos passarem para assinar sua rendição.
- Mas sabe de uma coisa, Breno? As vezes, a pessoa que você procura está mais perto do que você imagina.
Só subiu os olhos para dizer a última palavra de sua frase de efeito.
E assim, naquela mesa de shopping, começava uma bela amizade colorida.


quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Lei dos Nomes


Setembro de 2043.

Acaba de ser revogada a antiga Lei dos Nomes, devolvendo aos pais a tarefa de escolherem o nome dos seus filhos com responsabilidade e bom senso.

Aprovada há 30 anos, a Lei procurava proteger cidadãos de nomes vexatórios, dando a crianças de até 12 anos o direito de escolherem seus próprios nomes.

O autor do projeto que a revogou, deputado Ben 10 de Oliveira, comemorou o resultado.

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Assalto


É uma tarde de fina garoa e sol tímido em uma urbanizada praia do Guarujá. Aquele momento de sossego praiano que tem o gosto amargo de ter comido demais, com a preguiça de quem acabou de acordar meio torto no sofá.
Do mar turvo e espumante, emerge Fúlvio. O mar na altura das canelas dá a impressão que ele arrasta correntes de ferro enquanto caminha. Com a diferença que poucos presos de masmorra teriam o trabalho de descolar a bermuda molhada das coxas ao andar.
Ao chegar na areia dura e escura, pausa para um momento de reflexão. Mas antes de decidir entre um bauru ou misto, um estranho o aborda.
- Ei mano, descola um cigarro.
Fúlvio olha de volta com intensidade, na esperança de que as gotas salgadas que escorrem pelo seu rosto passem a mensagem.
Não passam.
- Cara, na boa, olha pra mim. Acabei de sair do mar.
- Eu vi. Então, dá um cigarro aí.
A insensibilidade com a razão irrita Fúlvio.
- Por que raios eu ia entrar no mar com meus cigarros?
- Você tem cara que faz esse tipo de burrice.
- Ah, falou o gênio que pede cigarro para quem acabou de sair do mar.
Ambos absorvem suas ofensas por alguns segundos.
- Beleza, truta. Então me dá sua grana. Você não é espertão? Certeza que tá com dinheiro pra comprar o cigarrinho pra depois do mergulho.
- Sério. É pegadinha? Cara, eu acabei de sair do mar. A nota estaria molhada, perdida, sei lá.
- Mas você pode ter entrado com moedas. Não é o sabichão? Se preveniu e trouxe moedas. E aí?
Fúlvio olha a sua volta e avalia a chance de alguém gritar o bordão do Sergio Mallandro e acabar com tudo. Silêncio. Lá longe, um vendedor anuncia o seu biju.
- Não. Não trouxe moedas. Não trouxe nada! Você não entende que seria uma idiotice entrar com dinheiro, cigarro ou qualquer coisa que estraga no mar?
- Sim, faz sentido. Mas se você não trouxe nem moedas, cadê seu guarda-sol?
- Olha pra cima, meu querido. Está nublado. Está garoando. Está feio o tempo. Ninguém traz guarda-sol. Ninguém mal vem pra praia.
- Então você veio só de bermuda pra cá, nesse tempo?
- Sim, porra. E de chinelos.
- Ah... Para quê chinelos se o asfalto e a calçada não estão quentes?
Fúlvio se descontrola.
- Por que eu passei na merda do supermercado antes, cacete!
- E para comprar o quê, meu querido?
Pela primeira vez em toda discussão, Fúlvio olha para os pés fincados na areia.
- Bom. Ahnm. É... Cigarros. Cigarros e um isqueiro.
O assaltante abre um sorriso entre sádico e triunfal.
- E nada mais?
Olhando para a vastidão do oceano, Fúlvio confessa com um longo suspiro.
- E um ziplock.

terça-feira, 6 de agosto de 2013

Polimaínha


Geraldo tinha três mães.

O que para muitos era impensável, insensato e inconcebível, para ele era a incrível realidade. Sua sede por amor materno o fazia manter o afeto de três progenitoras, sem que uma soubesse da existência da outra.

Seus amigos o aconselhavam a deixar essa vida. “Uma ainda vai sair machucada dessa história, Gera”. Mas ele dizia que amava todas, igualmente. E precisava de tempo para escolher qual amava mais. Para alguns, um cafajeste. Para ele, simplesmente a condição de um homem que amava demais.

Nos almoços de domingo era notável seu esforço hercúleo para manter um apetite convincente. Sempre variava entre desculpas diferentes a cada ocasião. Um rodízio de apologias entre precisar almoçar cedo, tarde e ter uma – tadinho! - desagradável indisposição estomacal.

Mas ter 3 mães tinha suas vantagens. Além de mimos e presentinhos triplos, Geraldo nunca teve problemas de natureza sogra-nora. Afinal, bastava apresentar a namorada certa para a mãe com mais chances de gostar daquele perfil.

Até que um dia, como toda mentira de pernas curtas e feitas de isopor, a casa a que o bom filho torna caiu. E desmoronou no momento que as casas sempre caem: durante um almoço.

- Filho, você tem que parar de deixar suas meias na sala.

- Me desculpe, mãezinha. Cheguei tão cansado que me joguei no sofá.

- Tudo bem, querido. Mas me diga uma coisa.

Dona Neide mudou seu tom. Um tom preocupantemente curioso, nunca antes ouvido por Geraldo.

- Essas meias... Quem te deu? – Dona Neide cruza os talheres e respira fundo.

- Ah, mãe... Eu que comprei, ué.

E continua.

- Você, comprando meias? Nenhum homem compra meias. Comprar meias e cuecas para o filho adulto é um dos direitos inegáveis da mãe. E gostamos dele. E eu sinceramente não lembro de ter comprado esse par, Geraldo.

- Mãe, eu comprei na saída do metrô. De um ambulante boliviano. Comprei aquele gorro junto, lembra?

Dona Neide fechou o rosto de vez. E olhou sério para o filho.

- Geraldo. Me fala a verdade. Você tem outra mãe, não é?

- Quê isso, mãe? Tá louca?

- Tem sim. Eu sei que tem. Saídas repentinas no domingo a tarde, meses sem trazer um saco de roupa suja, uma camisa que seja para eu passar... E o pior. Você elogiou o molho da minha lasanha hoje. Estava uma delícia, não é? Pois eu tenho uma notícia para você: ela é da Sadia.

- Ah! Bem que eu reparei. O tempero tinha um toque de...

- Pára! Pára de inventar, Geraldo. Eu já descobri tudo.

- Descobriu o quê, mãe? Que eu não reparei que seu talento na cozinha não se estende para uma lasanha? Que eu mesmo comprei uma meia nova?

- Não mude de assunto, menino. Eu nunca faço e nunca fiz lasanha. Dá trabalho e sou conhecida no bairro inteiro pelo meu escondidinho. Agora me fala! Confesse tudo e me diga: quem é a “mamma” que está te fazendo lasanha, Geraldo?

- Ninguém mãe! Você está delirando. Eu nunca teria outra mãe. Estou bem de mãe com você.

Dona Neide absorveu as desculpas de Gera por uns segundos. Levantou da cadeira e deu a volta na mesa, em sua direção. Em uma puxada rápida, segurou o filho poli-maternal pelos ombros e aspirou profundamente sua camiseta, com raiva. Geraldo ficou sem reação, pálido. Neide processou a informação recém farejada enquanto olhava firme para seu filho infiel. E arrematou:

- Ahá, sabia! Downy, a muquirana ainda usa Downy!

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Carimbo

De tanto se gabar por ter seios avantajados, Sandra foi para sempre taxada como uma pessoa chata e peitulante.

quinta-feira, 25 de julho de 2013

Frases que impressionam no primeiro encontro

- Sabe, desde meu segundo namoro eu me apaixonei pelo trabalho do detetive particular. O grampo no telefone da mãe dele funciona até hoje.

- Você sabia que sou escoteiro? Fui promovido de lobinho para lobo. Se ficarmos perdidos na floresta faço fogueira e tudo.

- Ah, obrigada. Eu adoro esse vestido. Não tem nada mais lindo que feminilidade, não acha? Por isso que nunca depilei na vida.

- Você gostar de onde estou te levando. Romântico, intimista. E o melhor: tem um mini kibe cremily incrível.

terça-feira, 23 de julho de 2013

Um homem chamado Ênis

A História conta que em 1922 arqueólogos britânicos encontraram a tumba perdida do faraó Tutancâmon, morto precocemente aos 19 anos. Uma vez aberto, o local de repouso eterno do jovem soberano do Egito fez surgir uma lenda: a Maldição do Faraó.

Todos que interrompessem seu descanso iriam se juntar a ele. Além de Dener, Costinha e uma terceira celebridade de sua escolha.

A verdade é que uma das causas para as eventuais mortes atribuídas à “maldição” foi um fungo microscópico, que aproveitou a saúde frágil de uma visitante da tumba.

Mas aí era tarde. Mesmo que o fungo confessasse tudo e abrisse seu coração em uma entrevista para o Zeca Camargo, seria em vão. O legal mesmo é culpar uma maldição misteriosa, com chances dela um dia virar um filme da Tela Quente.

Pois é de maldição que essa história fala.

60 anos após a descoberta da tumba, longe dali em um país bonito por natureza, nascia o pequenino Ênis Ribeiro Longo. E pior que Tutancâmon, que pelo menos curtiu uma adolescência chegando de biga faraônica pelas Wood’s do Egito, nosso protagonista já chegou ao mundo amaldiçoado.

Seu pai, ciente da combinação explosiva com seu sobrenome, o registrou em cartório para seguir um padrão. Afinal, tratava-se do caçula dos filhos Élio e Ênio. Superstição? Talvez. Ingenuidade, quem sabe. Falta de noção? Com certeza.

Acontece que ao registrar este nome, mal sabia ele o estigma que causaria ao filho. Da pré-escola à formatura, toda lista de chamada era um momento de tensão para o pobre Ênis Longo. Seus namoros sempre terminavam precocemente. Afinal, na sua provinciana cidade, nenhuma menina queria a fama de ser vista se agarrando com ele por aí.

Mas o que para muitos seria o fim, motivo para anos de terapia e uma personalidade insegura, para Ênis foi somente um combustível para sua dedicação incansável. 

Ênis transformou anos de piadas e bullying em combustível aditivado para seu ímpeto de batalhador.

Aguerrido e sempre firme às suas convicções, nosso herói trabalhou duro, muitas vezes até tarde da noite, para atingir seus objetivos. Com garra, fez todo constrangimento que passou ser a lenha para o fogo de sua força de vontade.
Valeu a pena. Hoje, Ênis, orgulhosamente, é um baita pica grossa na empresa onde trabalha.


sexta-feira, 19 de julho de 2013

Faixa Preta

Estudos comprovam que você só atinge a maioridade paternal quando completa um mandato de no mínimo 25 anos na função de pai.

Só assim você recebe o equivalente a faixa preta da paternidade.

Uma camisa pólo para dentro da calça jeans, com um tênis de corrida ultra colorido que não combina em nada com a roupa, mas é confortável nos pés. E isso basta.

quarta-feira, 17 de julho de 2013

Taxa

Saiu no Diário Oficial.

A recém criada “Taxa Migué” impõe uma rigorosa obrigação aos convidados de aniversários em barzinhos. De agora em diante, todos que saem muito antes da festa acabar terão que deixar 20% adicionais ao que considerou que consumiu na mesa.

Alegações como “então, comi só uma coxinha e meia dessa porção de 6” automaticamente aumentam a taxa em 25%.

Valores excedentes ao final da conta serão destinados ao Fundo de Amparo ao Aniversariante que Tomou Prejú, e poderão ser resgatados em qualquer agência da Caixa ou boteco que serve cerveja em copo americano.

segunda-feira, 15 de julho de 2013

Da série: cenas improváveis para um final de comédia romântica

Réveillon. Protagonista reencontra seu grande amor na praia, minutos depois da contagem da virada e meses depois de um término mal resolvido que angustiou o expectador nos últimos 30 minutos do filme.

Vieram caminhando de pontas opostas na praia.

- Oi.

Suspiram em sintonia. Ela responde.

- Oi.

Ele interrompe o silêncio com um sorriso. E uma pergunta.

- Você já beijou alguém esse ano?

Ela molha os lábios com a ponta da língua. Olha para os pés descalços e em seguida olha para ele.

- Então... Já.

Corta a música romântica. Cessam os violinos, os fogos, o barulho da espuma na areia. Em um “mute” constrangedor, pessoas de branco pulam ondinhas ao fundo.

- Eu não. Quebra essa?

Se beijam.

Fim.

sexta-feira, 12 de julho de 2013

Bife Hipster

Com o sucesso do bife Kobi, especialistas e entusiastas da gastronomia enxergaram um vasto potencial e criaram o Bife Hipster.

Nele, o boi é criado com uma série de mimos e técnicas que fazem sua carne ser uma iguaria sem igual.

Confira você também:

- O boi só escuta folk. Em vinil. Os primeiros 3 anos de vida são dedicados à discografia de Bob Dylan, intercaladas por uma narração ininterrupta... de “On The Road”.

- Sua pelagem é cuidada por um tratador/barbeiro vintage, que apara os pêlos - só com navalha - e faz que eles cresçam atrás da orelha, criando um único e belo mullet bovino.

- A alimentação é preparada com exclusividade por um bistrôzinho escondido no centro de São Paulo, que semanalmente envia pratos de sua cozinha fusion japonês-peruana.

A sugestão de consumo é sempre a mesma e vai estampada na embalagem: before it is cool.

quarta-feira, 10 de julho de 2013

Máquina do Tempo

Embarque comigo nessa máquina do tempo para a 5a série:

- Daqui a pouco acaba o recreio.
- Daqui a pouco acaba o recreio.

- Você vai ficar me imitando?
- Você vai ficar me imitando?

- Como você é idiota, cara.
- Como você é idiota, cara.

- Para, pô!
- Para, pô!

- Eu sou gayzão!
- Há! Eu sabia. O Dudu é gayzão, la la lá!

quinta-feira, 4 de julho de 2013

Amorcalipse

Um nervoso Seixas encosta seu Voyage velho em frente ao portão de um sobrado. Ajusta o óculos com o dedo indicador e dá 3 buzinadas, como combinado. Minutos depois, o portão se abre. Uma assustada Kelly olha para os lados para atravessar a rua, carregando uma surrada mala marrom clara.

Bate a porta do carro, e só interrompe o silêncio depois de alguns longos segundos.

- Aí Seixas... O que será de nós?

Só a expressão de medo naquele rostinho iluminado pelo poste da rua fazia Seixas querer contar tudo. Abraçá-la, protegê-la. Mas seguiu firme.

- Não há motivo para pânico, Kelly. Vai dar tudo certo.

O carro ganhou as ruas e seguiu seu rumo pela madrugada.

- Que sorte a minha de ser amiga do astrólogo...

Seixas a interrompe.

- Astrônomo.

- Isso mesmo, astromono. Do astrólogo que descobriu esse asteróide terrível. Onde fica esse abrigo subterrâneo?

- A alguns quilômetros daqui. O governo já arranjou um lugar para toda sua família, fique tranquila. E preparei uma série de mantimentos para esse tempo de reclusão.

- Ai, que bom. O que você trouxe?

- Ah Kelly, coisas importantes. Um purificador de água e outro de ar, sementes, painéis solares e alimentos variados.

- Jura?? Você trouxe Bis Branco? Você sabe que não vivo sem Bis Branco, Seixas.
Antes que pudesse impedir, Kelly se esticou entre os bancos de frente e abriu as caixas de papelão.

- Kelly! Não mexa aí! Tem um equipamento delicado, que pode...
Mas já era tarde.

- Seixas, o que é isso?

Um silêncio de tensão envolveu todo o carro.

- O mundo vai acabar e tudo que você trouxe para passar o apocalipse é isso?

- Kelly, você abriu a caixa errada. Todas as outras são só de itens básicos para nossa sobrevivência.

Nem o próprio Seixas se convenceu. Perplexa, Kelly foi tirando item a item.

- Vinho Lambrusco? “Ghost – do outro lado da vida”? Panela de foundie? Edredom?

Burro. Idiota. Imbecil. Seixas olhava fixo para a estrada, arrasado com o fracasso do seu plano. Agora ele nunca mais veria Kelly. Talvez a veria, no dia de visita na cadeia. “Tentativa de sequestro”. Tentativa de um desesperado. De um apaixonado.

Seus pensamentos foram interrompidos por dedos macios, que alisaram a parte externa de sua mão como se fossem trocar de marcha juntos. Seixas relutou em olhar para o lado. Mas logo começou a desistir da ideia com o canto do olho. E aos poucos, viu por completo o sorriso que vinha do banco do passageiro.

- Pois então, que venha o fim do mundo.

E deslizando por ruas sinuosas, o carro seguiu para seu abrigo subterrâneo na Ricardo Jafé.