domingo, 17 de novembro de 2013

Anestesia



Toda pessoa hospitalizada inevitavelmente vai acordar da sua anestesia com o barulho da máquina que monitora os batimentos cardíacos. Abrir os olhos devagar, sendo despertando para o mundo por um apito constante, seco e robotizado.

Pelo menos no cinema é assim.

E foi exatamente assim que Carlos acordou.

Na pelada de terça, Carlos havia fraturado feio o seu braço. Uma placa de titânio e mais 8 pinos de guarnição tiveram quer ser colocados, em uma cirurgia de uma hora. Obviamente, para tal trabalho de marcenaria óssea foi preciso que ele fosse devidamente sedado.

Com o clarão da luz branca e incômoda do seu leito, Carlos lentamente abre os olhos.

Demorou alguns segundos rodando os olhos pelo quarto pela lembrar o que aconteceu. Futebol. Escanteio. Pulo. Queda. Fratura. E uma máscara segurada na sua boca, acompanhada de um doce pedido sugerindo que ele respirasse fundo aquele gás que lhe lembrava lança-perfume.

As silhuetas borradas na sua frente ganharam contornos mais bem definidos.

- Eu não estou acreditando. Você acordou. Você finalmente acordou!

Um homem na faixa dos 60 anos abre um sorriso contente. Seus olhos quase transbordam lágrimas de alegria.

Carlos nunca viu ele na vida. O homem, por outro lado, parece conhecê-lo há muito tempo. E com um sorriso, pergunta:

-  Como você está se sentindo, Tutinho?

Faltam palavras para Carlos. Ninguém no mundo, além de sua esposa há 20 anos, conhece ou usa esse apelido. O qual tem regras claras de ser empregado somente em situações que os dois estão sozinhos.

- Quem é você?

- Sou eu, Tutinho.

- Que palhaçada é essa? Sônia! Sônia!

- Não precisa chamar por ela. Eu estou aqui, Tutinho.

- Para de me chamar de Tutinho, seu filho da puta. Só a Sônia me chama de Tutinho. E se você não sair daqui agora e acabar com essa palhaçada eu vou quebrar a sua cara. Sônia!!

- Janeiro de 1996. Fomos para Natal. Alugamos um buggy. Você dispensou o motorista e disse que sabia dar muito mais emoção que o bugueiro. Você quase capotou em uma duna e por pouco não voltamos mais cedo para casa.

Palavras que expressariam espanto transformam-se em olhos arregalados no seu rosto.

- A noite você insistiu em comer uma dúzia de ostras, só por que era muito barato. Passou super mal e eu te levei, pálido, para tomar soro.

O homem espera Carlos absorver tanta informação.

- Está vendo? Sou eu, Carlos.

Com um cafuné na sua cabeça, o homem suspira:

- Eu tenho tanto para te contar...

Carlos não consegue esboçar reação. O homem continua.

- A cirurgia no seu braço teve uma série complicações. E tiveram que induzir você a um coma.

O homem respira fundo, dando uma involuntária pausa dramática ao que ia dizer.

- E se passaram 15 anos desde então.

- Eu estava há 15 anos em coma??

O desconhecido afirma com pesar. Carlos começa a tatear seu rosto. E para seu horror, ele está coberto por uma barba espessa. O homem tira um espelho de maquiagem do bolso da frente da camisa. Entrega virando seu rosto para o outro lado.

Carlos está com uma barba branca. Os cabelos, antes grisalhos, foram praticamente tomados por fios prateados pela velhice.

- Isso não é possível. É um sonho. Só pode ser um sonho.

- Não Carlos, não é.

Com um estalo, Carlos lembra de outra dúvida que ele queria tirar.

- Então quem é você?

- Eu não sei por onde começar. No fundo, sabia que esse dia ia chegar...

- Me fala, cacete! Quem é você?

- Eu sofri muito esse tempo todo. Não conseguia seguir minha vida. Não conseguia virar a página, por que de fato não era uma viúva. Vivia com uma tristeza no peito, um vazio. E só revi a felicidade quando encontrei o Sandro.

- Sandro? Quem é Sandro?

- Sou eu.

A máquina apita freneticamente.

- Isso mesmo, Tutinho. Eu era a Sônia, a sua Sônia. A sua esposa. E eu mudei de sexo.

Carlos tenta balbuciar algumas palavras. Inflada de ar e coragem, Sandro continua:

- Tomei hormônios. Usei barba, bigode. Menos cavanhaque que ficou pouco másculo. Eu finalmente vivi, sabe? Fui para a balada. Para o boteco jogar sinuca. Fui até para o Carnaval de Salvador, com o Betão e o Vagner, seus amigos divorciados. Eventualmente encontrei uma mulher boa, sosseguei. A vida seguiu.

- Isso não pode estar acontecendo comigo. É pegadinha.

- Não meu bem, não é... Mas por favor, me entenda. Os médicos disseram que você era um casa perdido! Eu não tive opção senão buscar ser feliz.

O recém acordado afunda os rostos nas mãos, em um esforço para que quando esses cortinas abrissem tudo voltaria ao normal.

- Mas eu estou aqui agora, do seu lado. Além de sua mulher, sempre fui sua amiga. E agora sou seu amigo. Seu brother.

Sandro sorri ternamente para Carlos.

- Encare isso como um recomeço! Você acordou. Você tem uma vida para aproveitar agora.

Carlos respira fundo por 40 minutos, com Sandro esperando pacientemente ao seu lado. E consegue, em um milagre da sensatez, por as coisas em perspectiva. Realmente, ele poderia agradecer por estar vivendo. Afinal, o que mais poderia piorar? Ele realmente tinha usado toda sua cota de azar da vida. Agora era recomeçar. Isso mesmo: recomeçar.

- E o Carlinhos, cadê o Carlinhos?

Sandro sorri mais uma vez.

Um rapaz vestido em um terno alinhado e com sutis riscas de giz entra no quarto. Estava esperando a sua deixa para abrir a porta.

Pela primeira vez desde que acordou, Carlos sorri.

- Carlinhos! Como você cresceu, menino. Está um homem! E que elegância, parece o Ronnie Von. Me conta, o que você faz da vida?

- Eu vendo Monavie, pai.