terça-feira, 24 de setembro de 2013

Cine Sonho


O ano é 2114, D.C.
O mundo continua com os hábitos do século passado. Fotos na academia, auto-retrato com biquinhos e frases sobre o trânsito – mesmo que agora ele irrite pelo ar, em carros elétricos que flutuam sob comandos de voz – continuam a fazer parte de nossa rotina. Talvez agora com smartphones um pouco mais modernos.
A Ciência e a Tecnologia, essa dupla dinâmica do progresso, trouxe avanços consideráveis para a Humanidade. Mas entre suas diversas contribuições, uma invenção conseguiu jogar para escanteio o que parecia impossível. O Cinema, essa arte que tanto entretinha 100 anos atrás, foi posta de lado para algo que até então ficava confinado nas salas de psicólogos ou na cabeça de seus autores: os sonhos.
O processo de telecinagem de sonhos foi uma revolução ao alcance de todos. Um simples aparelho que capturava as ondas eletromagnéticas que o cérebro produzia enquanto a pessoa sonhava. E as transformava em imagens. O sucesso foi estrondoso. Pela primeira vez, o homem podia gravar e assistir seus sonhos, no simples apertar de um botão. Como um serviço de uma TV a cabo.
Os primeiros anos foram um processo de maturidade do serviço. Com a sociedade compreendendo a natureza reveladora de um sonho e a necessidade de torná-lo algo privado e íntimo. Em pouco tempo o ato de assistir seus sonhos entrou na categoria daquilo que é feito em um banheiro. Todo mundo tem uma boa ideia do que se passa lá dentro, mas não é por isso se pergunta o que aconteceu.
Os que decidem revelar seus sonhos normalmente caem no limbo de ignorância coletiva. Simplesmente por que o resultado, via de regra, é um embolado de imagens desconexas e com pouco sentido até para seu autor. Somente alguns poucos nascem com o dom de uma só vez dirigir, editar, produzir e fotografar verdadeiras obras-primas da Oitava Arte: o Cine Sonho.
Laércio Sandoval era um deles. Considerado um dos maiores diretores de sonhos do seu tempo, Laércio colecionava sucessos. Aclamado por público e crítica, era considerado um diretor visceral, com obras que levavam o expectador para lugares inimagináveis. Como a história do menino equilibrado de bruços em 10 andares de pranchas de body-board. Do alto dessa frágil torre de pranchas empilhadas, o garoto tinha que ralar uma bolinha de noz moscada e fazer o tempero aterrisar em um pires lá embaixo. Poesia pura. Um gênio do seu tempo que realizava obras-primas simplesmente apertando REC antes de dormir.
Ainda era 2114 quando inimaginável aconteceu. Na pré-estreia de seu último sonho, exclusiva para críticos e redes de cinema, o projetor sequer iluminou a sala. Constrangido, Laércio cancelou a sessão, culpando um defeito no aparelho. Remarcou a sessão com garantias de um projetor novo e um sonho incrível. Assim que a sala se esvaziou, lhe correu pela coluna um calafrio que ele sempre temeu. Ele simplesmente deu play para sua pequena platéia sem saber o que tinha sonhado. No caso, nada.
Passou o dia se distraindo e propositalmente se cansando. Palestras, sessão de autógrafos, tarde de sexo com uma fã. Tudo para seu corpo ter motivo de sobra para descansar e deixar seu cérebro – ou melhor, seu hipocampo – fazer sua mágica.
Acordou revigorado e ansioso. Foi correndo para a sala e colocou o resultado de sua noite bem dormida para rodar. Nada.
Os dias passaram e Laércio seguiu sua rotina. Sempre com a mesma decepção. Os dias se tornaram meses, as visitas dos executivos se tornaram nulas e a legião de fãs – inclusive aquela da tórrida tarde de prazeroso esforço físico – desapareceram.
Confiante e decidido a se reerguer, Laércio procurou resolver seu bloqueio sonhativo em termos práticos. Precisava abastecer seu cérebro de novas experiências. Novos anseios, pessoas, memórias. Por isso, fez uma pequena mochila e viajou. Durante meses, conheceu lugares incríveis e pessoas igualmente interessantes. Passou perrengues e bons momentos. Levou consigo, é claro, um gravador de sonhos para registrar o que tudo isso produziria enquanto dormia.
E o resultado, novamente, foi longe do esperado. Somente imagens desconexas do que viveu. Frases e imagens soltas no turbilhão de suas memórias.
Determinado a ter um sonho grandioso outra vez, Laércio percebeu que lhe faltava um estímulo incendiário: paixão. Movido por sua ambição, conseguiu se mostrar uma pessoa atraente o suficiente para embarcar em um relacionamento sério. E o melhor: com amor.
Anos depois, terminaram. Curiosamente, a pedido de Laércio. Segundo ele, a tristeza poderia gerar sonhos belíssimos.
Eventualmente seu plano falhou. E ao invés de um lindo sonho, Laércio teve que conviver por um tempo com o pesadelo de seu arrependimento.
Os anos foram seguindo, com Laércio vivendo com empenho alegrias, decepções, paixões, lugares, desejos, momentos, risadas e descobertas. Tudo para conseguir ver de volta às telas do Cine Sonho uma obra de Laércio Sandoval.
Nunca mais viu um sonho seu projetado no escuro do Cinema. Mas sem saber, teve uma vida digna de aplauso.

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