sábado, 24 de julho de 2010

Não é Cutoco, é Carinho





















A casa quase vazia de uma família completa dorme. No aconchego do silêncio, os móveis estalam, como que se espreguiçando. Na sala de jantar, o pêndulo do relógio de corda nina o sono dos seus números e ponteiros. Alguns motores a diesel passam roncando pela rua, longe de atrapalhar o ronco nasalado de quem dorme.


No quarto de casal, a mãe dorme com seu caçula, de 4 anos. Uma viagem de trabalho do pai deu ao pequeno a responsabilidade de homem da casa, o colocando na cama dos pais sem o medo de um pesadelo ou de um barulho estranho lá fora.

O garoto tinha cabelos pretos, lisos, recortados no molde de uma tigela de mexer massa de bolo. Usava a roupa que para qualquer outra idade seria o cúmulo do ridículo: um pijama azul marinho, desses que o zíper corre pela barriga, com meias embutidas nas calças.

Dormiam tranquilos, ela com sua habitual almofada entre as pernas, ele com um travesseiro chamado Nana. Aproveitavam o descanso de um sono silencioso, tranquilo, de longas respirações carregadas de conforto.

Tudo confluía para uma ótima noite de sono, até um intruso aparecer. Mais precisamente, um pé.

Vestindo suas meias embutidas, o pé passa pelas pernas da sua mãe, como se fosse acender um fósforo nas suas canelas.

No mesmo instante, ela abre os olhos. Acorda bruscamente, assustada. Olha para o lado. Mas logo, a surpresa do gesto repentino é substituída pela ternura de ver seu filhote dormindo. Sorri, passa a mão nos seus cabelos. Encaixa a cabeça na fôrma já deixada no travesseiro, e empurra com um suspiro qualquer tentativa de seu corpo não deixá-la voltar a dormir.

Mas logo antes do sono chegar, o pé novamente risca sua canela. Abre os olhos e vira-se para o menino, que dorme profundo. Agora com um pouco menos de intensidade, o carinho maternal prevaleceu. Lentamente, volta seu corpo para posição original na cama e fecha os olhos.

O primeiro sonho estava pronto para passar. O sono com ajuda do edredom a envolvia e encaminhava seu corpo para um merecido descanso. Até outro pé passar por sua perna. De novo. O suspiro de ternura agora vira um sopro de impaciência:

- Filho, para de me cutucar. Poxa, terceira vez já.

O menino abre os olhos, denunciando que o sono não era tão profundo assim. Olha fundo para a mãe, pensando em cada palavra. E com firmeza, responde. Curto.

- Não é cutuco, mamãe... É carinho.

Desce da cama como quem desce de uma mureta alta, encostando primeiro os pés no chão com ajuda dos braços no colchão. Com um metro e 10 cm de orgulho, pega sua Nana e sai do quarto arrastando seu pijama de meias embutidas.

A mãe fica deitada, pensativa. Arrasada. Perdeu a paciência por um gesto de carinho. Tão inocente, tão puro... Tadinho. Um sentimento de culpa tomou seu corpo, que logo a tirou da cama.

Encontrou o menino no sofá com sua Nana e cobertor, fazendo força para fechar seus olhos. A cena era de apertar o coração. Agachou perto dele, passou as mãos pelo seus cabelos.

- Filho, vem dormir com a mamãe. Não fica aí...

Sem abrir os olhos, com a boca abafada por sua Nana, responde:

- Não era cutuco. Eu te fiz carinho e você falou que era cutuco. Era carinho.

Ela suspira, entre achando graça e com peso na consciência.

- Eu sei... Desculpa. Vem pra cama, vem.

- Não, quero ficar aqui.

O garoto estava decidido. O orgulho havia se tornado manha de criança. A mãe entra no jogo.

- Então tá bom. Você quer ficar mesmo aí?

- Quero. Vou dormir aqui.

A mãe volta ao quarto e se deita. Tinha feito o certo. Chamou ele duas vezes, insistir seria demais. Seria incentivar um comportamento errado, de criança mimada. Em breve ele voltaria para a cama e todos cutucos ou carinhos se resolveriam. Ficou deitada acordada, revesando os olhos entre o teto e a porta meia aberta. Passam longos minutos e nada de pézinhos caminharem para dentro do quarto.

Lentamente, o sono a envolve.

Dorme com uma sensação ruim no peito. De sacrifício por ter deixado o caçula sozinho no sofá, com um cobetor tão fino, por um motivo tão bobo.

Tudo confluía para mais uma noite de sono, até um intruso aparecer. Mais precisamente, um pé.

E logo em seguida, um sorriso.

5 comentários:

Karina Campagna disse...

Teus textos me envolvem... tuas palavras me encantam! Sempre uma boa ideia visitá-lo aqui!

Unknown disse...

Genial como sempre!
Muito bem escrito.

Anônimo disse...

muito boa a história, envolvente e real!

aron disse...

O meu coco... que bunitio!!!
Amei kra.. Muito bom meu merda. :D
Vibe. Demais. Curti mt

Li Boreli disse...

"O garoto tinha cabelos pretos, lisos, recortados no molde de uma tigela de mexer massa de bolo"

é você?

estou encantada!
você vai ser padrinho de algum filho meu depois desse!!!