domingo, 1 de março de 2009

Baile de Carnaval















O ano era 1953. Os confetes que choviam do alto do salão eram 130 mil 958. Os copos de ponche servidos, 10 mil 195. E Alcides era 1. Sozinho na pista com o corpo ninado pela marchinha da Banda Municipal de Pirapora do Bom Jesus. Ao seu redor, casais circundando olhares e trocando passos, numa estranha dança do acasalamento arranjado:


- Não é ele o filho do Dr. Coutinho?

- Cresceu, o menino. Vai seguir na medicina e mudar pra Campinas. Falta só uma moça, Judite...


O recado fora dado. Como um bonde elétrico, Judite saiu a procurar sua caçula para ser na saúde mulher e na doença a eterna paciente do futuro bom doutor. Ergueu a saia e saiu salivando a procura por Martinha, com suas bandeirolas de gordura braçal a tremer a cada passo apressado. Encontrou-a numa animada roda de conversa com as filhas do Tenente Coimbra, de coxinha na mão e champanha na outra. Içou seu braço com a habilidade de um vaqueiro e passou ao pé do ouvido palavras com autoridade maternal:

- Minha filha, ali está o Alcides Coutinho. Lembra dele?

- Creio que sim mamãe, já vi ele na missa.

- Pois então. Vais casar com ele. Vamos lá que quero te apresentar.

As pernas de Martinha estremeceram. Um turbilhão gelou-a por dentro, trazendo com ele uma única figura, um único rosto: Vamberto, o capataz da estância. Barba cerrada, cigarro de palha entre os dentes e entre as pernas, uma bela fivela de cinto. Por ele, Martinha tinha uma paixão quente como ferro de marcar, que há tempos tinha deixado um V no seu coração. Juntos, planejavam fugir a cavalo rumo a um horizonte amarelado pelo sol, digno de ser engarrafado com areia colorida.

Para evitar que este causo leve o mesmo Caminho das Índias de histórias sobre amores impossíveis, voltamos ao Alcides.

Havia algo de bovino no olhar daquele tímido rapaz de Pirapora. Não que lhe faltava personalidade. Mas sim, atitude. Parado no salão a bebericar seu ponche, Alcides estava em traje de gala. Um legítimo pão. Mais precisamente, um croissant, visto que o traje costurado por sua avó dava um aspecto por demais delicado ao jovem de bigode recém cultivado e reluzente com brilhantina.

Dr. Alicides sentia que ali não era seu lugar. Aquela cidadezinha, com seu coreto, seu padeiro português e suas senhoras de braços bronzeados a conversar na janela. Queria emoção, paixão, discórdia. Queria viver com ousadia.

Queria tanto que chegou a pedir para o autor que lhe desse algo novo, um desafio que lhe sacudisse da sua massa francesa de insegurance. E por isso, em menos de um parágrafo, volto para Martinha e Dona Judite - atendendo a pedidos. E para apimentar um pouco mais sua súplica e abusar de minha condição de dono dessas linhas, injeto nesse rapaz provinciano a súbita coragem que toma os apaixonados.

Aquela que esbofeta a timidez e atravessa o salão para tirar a moça para dançar, que declara gaguejado todo seu afeto, que desafia sogros e rouba beijos estalados. De olhar bovino, Alicides teria agora um olhar penetrante e decidido como de um felino, canino ou qualquer outro animal que tem dentes para mostrar.


Tudo isso com a condição que fizesse algo em relação a esse Vamberto Valentão, que acabou de amarrar seu cavalo em frente ao salão e irá em breve pisar de botinas e esporas dentro do salão, decidido a levar o seu novilho para casa.

Judite entregou sua filha para Alicides pensando no dia que seu marido a entregará no altar.


- Dr Alcides, meu filho! Mas você está um rapaz muito bonito...

- Muito obrigado, Dona Judite – sorriu polidamente com a salsinha do bolinho de bacalhau cobrindo parte de um dente.

- Conhece minha filha caçula, Martinha?

- Ah sim, claro! Como está a senhorita? – estendeu a mão, trêmula de frio pelo gelo na barriga que aquela presença subitamente o provocara.

“Que sensação estranha!” se surpreendeu Alcides. “Estarei eu com princípios de taquicardia?” Perguntou-se o Dr Coutinho. “Se sim, não me venha com estetoscópios...” Respondeu o rapaz agora dono de uma incomum paixão.

Logo após o cumprimento, o sorriso que antes era de educação permaneceu, desfigurando-se lentamente em algo que por pouco seria patético. Como se tivesse levado um beliscão na cintura, Alcides se sacode de seu devaneio e volta a si, com um balançar afirmativo da cabeça acompanhado de um sorrisinho de lábios colados.

Pena que foi tarde demais para a salsinha. Essa não saiu desapercebida.

A conversa fluiria bem, Dona Judite iria inventar uma desculpa para pedir licença e deixar os dois pombinhos à vontade, e ela mais ainda para reunir as comadres e narrar orgulhosa o promissor flerte de sua filha. Mas algo aconteceu. Eis que por cima dos ombros do bom doutor, Dona Judite arregala os olhos num misto de espanto e surpresa. Os demais foliões um a um fizeram o mesmo, entre cutucos e chiados de cochichos.

Sem tirar o chapéu e a fama de implacável arruaceiro, Vamberto adentrou o salão a passadas firmes, com os olhos encobertos por um par de grossas sobrancelhas arqueadas num V.

A tensão era tanta que quase abafou a música, que só não parou por um capricho do regente, que cortava o ar com sua varinha completamente envolvido por suas suas queridas marchinhas.

Uma combinação de receio combinada com uma instigante expectativa do público abriu passagem para o capataz, que seguiu direto para o seu novilho dando boa noite somente para o seu desejo. Mesmo antes que seus olhos chegassem ao seu destino, Martinha já sabia – ou sentia - quem estava no salão. Seus seios arfavam dentro do vestido e um calor vaporoso subiu até seu rosto, afoguetando o seu pescoço. Ela ficou parada, de olhos semi-cerrados, esperando.

Completamente alheio a tudo que passava, Alcides rapidamente consultava por assuntos, e tudo que vinha eram termos médicos, principalmente sobre geriatria.

Os largos ombros do homenzarrão eclipsaram Martinha, essa já trêmula esperando pelo que viria. Num movimento rápido, os dedos da mão enorme e calejada de Vamberto envolveram o delicado braço da moça, puxando ao seu encontro. O público acompanhava tudo, no mesmo tipo de silêncio que precede uma cobrança de pênalti.


A cena provocou em Alcides uma forte descarga elétrica, que correu por sua espinha na velocidade de um arrepio. Seus lábio enrijeceram, seus dedos se fecharam na palma da sua mão. Pela primeira vez na sua vida, Alicides mostrava os dentes.

Com um grunhido, o mal-encarado Vamberto olhou para Alicides, medindo-o dos brilhantes sapatos de festa ao topete lustroso.

- Algum problema, rapaiz?

- Não, nenhum. Só larga a filha de Dona Judite. Agora.

Algumas senhoras taparam a boca com o espanto pela súbita coragem do tímido primogênito do Dr. Coutinho. Olhares de admiração foram trocados entre os homens do salão. Alcides encarava seu oponente com o queixo erguido. Não só por orgulho, mas pelos intimidadores 1,90m parados a sua frente.

E entre tanta coragem e confiança, pensou na sua morte. Sabia da loucura que estava fazendo. Do porte de seu rival. E do amor que sentia, que pra ele justificava qualquer loucura. Até essa.

Tomando impulso com o tronco de seu corpo, Alcides desfere o único e melhor soco de sua vida. Rápido e forte, no nariz do estupefato capataz. E antes mesmo que tombasse, Vamberto teve tempo de fechar os olhos para um segundo punho cerrado, agora o esquerdo, que veio acertar dolorosamente a maçã do seu rosto.

Como o gigante Golias depois de uma pedrada na testa, o valente capataz tombou para o chão encarpetado de confetes. E lá ficou, inconsciente. O público delirou pelo feito, dando vivas a quem facilmente poderia agora se candidatar a prefeito. A surpresa veio até para Martinha, que de indiguinada pela violência, olhou para Alcides com o mesmo encanto que escutava as histórias de príncipe na hora de dormir.

Se antes todos esperavam pela luta, agora o gran finale era outro. O merecido beijo da donzela. A recompensa como nos romances de Capa e Espada ao bravo heroí da noite. Tomado pela adrenalina e por uma arrebatadora confiança, Alcides estendeu a mão à sua amada.

- Você está bem?

E para a perplexidade de todos, com um único movimento ele levou a mão a cintura, puxando seus lábios de meia-idade ao encontro dos seus.

O ano era 1953. Dona Judite tinha 49 anos. E Alcides era 1 rapaz completamente apaixonado.

4 comentários:

Victor Meira disse...

Bacanérrimo, Fubinha. Narrativa em tom de literatura-milenovicentos, com pitadinhas gostosas de metalinguagem. O vilão, circundado pela inicial não só de seu nome, mas de sua própria - vil - condição, é uma construção bem bacana.

É um dos teus textos mais legais que eu já li.

Massa!
Abração.

Unknown disse...

mto bom fuba, curti a sutileza no final qdo ao inves de pegar a martinha ele pega a dona judite

heheh
abraços!!

Uma mulher, uma menina, uma moça... disse...

Ai Fubá!

obrigada por esta leitura! =D

aron disse...

confesso que na primeira leitura não tinha pego a sutileza do final!
muito bom meu coco!!!
Massa! :D
já já vai viver disso! acho que ja vive... :))
bjo meu merda!