“- Michael, Michael, eles não ligam pra gente!”
E assim ficou gravado. Eternizado numa rodela de plástico e na faixa-título de um álbum de ninguém mais que o Rei do Pop. A voz pertencia a Rosana, carioca da gema e clara moradora do morro da Dona Marta.
O ano de 1996 rendeu 365 dias incomuns para essa mãe solteira de 34 anos. Todos, da vizinha ao Cristo Redentor, sabiam de quem era a voz que ecoou pelas casas e barracos da favela na gravação de um inesquecível videoclipe. Rosana - ela mesmo, a Rose! - numa música do Michael Jackson. Era tão fantástico que o próprio Cid Moreira concordara com isso num domingo.
Mas o que poucos sabiam, e talvez nem ela mesma, era o que sucedera nos meses seguintes à gravação da fatídica frase. Funkeiros, globais, flamenguistas, vendedores de biscoito Globo - todos da Cidade Maravilhosa queriam escutar pessoalmente a voz do sucesso. Era um deles lá, famoso. E solícita, ela sempre repetia. Com a mesma entonação, com o mesmo sorriso na voz.
Com o tempo, tamanha repetição foi se tornando incômoda. Grávida, toda vez que repetia sua frase o nenê se mexia com tamanha agilidade que quase nascia ali mesmo, seja no ponto de ônibus ou no caixa do supermercado. Parecia um moonwalk no seu útero. E ela sabia – ou sentia – que para seu filho daria a luz com um foco de holofote.
Então, após 4 meses de ininterruptos “Michael, Michael…”, nascia Maicou Amintas. Parto normal, uma criança saudável. Branquinha como o pai, um turista holandês que se encantou com outras curvas além das do Pão de Açúcar. Veio ao mundo com 2 quilos e nenhum choro, somente com um grito agudo, estridente, vogalizado em U.
Desde que se deu por gente, Maicou se sentia diferente. A fama que herdou de sua mãe logo ficou esquecida e ele ganhou manchetes próprias na comunidade. O menino loiro e de olhos azuis que morava na Dona Marta, que falava com xis e érre puxado, que queria jogar como o Romário e se derretia no calor de dias de Rio 40 graus.
Como herança aquela frase tinha deixado uma estranha sensação, que acompanhou todo crescimento de Maicou e vinha a tona nos momentos mais inusitados.
Ele tinha 13 anos. O jogo era sério: final do campeonato InterMorros, promovido pela Prefeitura e patrocinado pela Favela Tour. Olheiros de grandes clubes cariocas comiam pipoca a paisana, procurando suas galinhas de ovos dourados. O céu de domingo estava de um azul sem nuvens, com pessoas empoileradas em telhados e postes para ver a garotada levando a sério a brincadeira.
Com um apito, começa o jogo. E do banco de reservas Maicou assiste aflito a pressão do time adversário. Com dois gols de desvantagem, o técnico coloca o loirinho no jogo.
Maicou entra em campo e já recebe a bola. Dois marcadores avançam em sua direção, sedentos por sangue e pela esfera de borracha que ele leva nos pés. Instintivamente, Maicou dribla. Ágil, ele puxa a bola e desliza para trás, como se flutuasse rende ao chão, levando com ele nacos de grama e olhares estupefatos.
Ainda com a bola nos pés, ele gira o corpo no próprio calcanhar e passa entre os dois zagueiros. Sem saber como ou por que, conclui a finta com uma mão na genitália e outra apontando para cima, fazendo o mesmo grito estridente e vogalizado em U.
E pela primeira vez na sua vida, Maicou fez uma platéia ir à loucura. Casas chacoalham, telhados rangem, o povo em peso ovaciona o novo astro. E mesmo não sendo uma invasão da polícia, rojões estouram no Morro da Dona Marta.
Os anos que seguiram aquela partida foram de glória para Maicou. O talento nato e agilidade do menino com cara de gringo era um show à parte. Dribles desconcertantes nas pontas dos dedos, voleios que pareciam torcer seu pé, cabeçadas inacreditáveis, sempre comemoradas com um giro e um grito agudo, já acompanhado em coro pelas tietes.
Passou o tempo e Maicou começou a sentir na pele as cobranças da fama e da puberdade. E essa última cobrou caro para ele. Mais que ver pelo corpo nascer pêlos e desejo sexual, para Maicou essa época de rouquidão e descobertas não foi nada agradável.
No começo ficou contente, achando que era o bronzeado que finalmente decidiu reluzir na sua pele. Mas a cada dia o bronze se tornava mais intenso, e mesmo após semanas de recusas a convites para a praia, continuava a ficar moreno da cor do Brasil. Com medo do que seus fãs - seus queridos fãs - diriam, Maicou ficou cada vez recluso, trancado em casa apavorado de si mesmo.
Olhava no espelho e não acreditava. Seu cabelo estava escurecendo - e enrolando. O que antes eram longas madeixas loiras e lisas aos poucos dava lugar para um microfonado Black Power. Seu fino e arrebitado nariz estava alargando, com narinas grandes. Se sentia mais forte, mais viril e com ainda mais saudade dos tempos de traços europeus.
Maicou não conseguia deixar de arregalar os olhos a cada ida ao banheiro. Suas cuecas não serviam mais, e tudo que usava - principalmente de peças íntimas - eram roupas do varal de Jorjão, vizinho e eterno pretendente de sua mãe. Rose, por sua vez, acobertava a reclusão de seu filho com maternal cumplicidade. Muito antes da chegada da Gripe Suína, desculpava por ele com uma raríssima e contagiosa doença com C maiúsculo, mistura de catapora, caxumba e conjuntivite.
Meses haviam se passado desde que Maicou se trancou em casa. Afastado pela doença e pela rotina de sua vida, o morro da Dona Marta logo esqueceu quem era Maicou Amintas.
Foi num domingo de Maracanã que ele decidiu, pela primeira vez desde o primeiro cabelo preto nascer, sair de casa. Colocou a calça jeans como sempre fazia: calça pro alto, um ágil chute pra cima e pronto: vestido. Camisa branca com o logo do Oludum - presente de Jorjão - tênis surrado e óculos Raio-Bam. Um pequeno pente, muito parecido com um garfo, completava o visual espetado no seu cotonetado Black Power.
Abriu a porta devagar, e mesmo de óculos escuros, a luz de sol que atravessou desde a primeira fresta logo irritou seus olhos. Seguiu para a rua e começou a descer a ladeira se acostumando com a visão. E que bela visão! Crianças caminhando, pessoas tocando suas vidas e aproveitando o domingo.
Chegou ao campinho. O campo de futebol, palco de tantas performances, de tantas gritos agudos e tanta histeria. Rapazes que jogavam bola pararam a jogada, olhando quase em sincronia para o curioso visitante que invadiu o esburacado gramado.
- Caraca negão, sai daí que a gente quer jogar!
E pela última vez na sua vida, veio como que gravado num CD de platina uma única frase:
- “Michael, Michael, eles não ligam pra gente!”
E Maicou achou ótimo.